O debate entre os filósofos norte-americanos Monroe Beardsley e George Dickie, durante a segunda metade do século XX, foi seminal para discussões posteriores acerca da natureza da experiência estética. Em linhas gerais, Dickie (1965) alega que Beardsley (1958) confunde as características do objeto da experiência com as características da experiência ela mesma, ao apresentar as características de intensidade, complexidade e unidade (que é completa e coerente) como características da experiência estética. De acordo com Dickie, intensidade, complexidade e unidade são características do objeto, uma obra de arte ou um paisagem da natureza, experienciadas por alguém. E, caso a experiência estética exista, ou possa ser caracterizada como uma experiência distinta das demais, ela será o resultado das experiências das propriedades do objeto. Beardsley não nega que a experiência estética seja o resultado da experiência das propriedades do objeto. No entanto, ele alega que a experiência ela própria possui as três características (intensidade, complexidade e unidade) e que delas resulta a sua magnitude. O debate Beardsley-Dickie é sobre como podemos identificar, definir ou explicar a natureza da experiência estética. A seguir, apresento brevemente esse debate deixando algumas considerações para futuros estudos.
1. A proposta de Beardsley
Beardsley (1958, p. 527) questiona se podemos encontrar elementos em comum entre nossas experiências com objetos estéticos (música, pinturas, etc.), que nos façam as distinguir das demais experiências. Ele tenta, então, apresentar características que descrevem uma experiência estética a partir de nossas relações com objetos estéticos.
Segundo sua proposta nós fixamos nossa atenção “sobre componentes heterogêneos mas correlacionados do campo fenomenalmente objetivo” (Beardsley, 1958, p. 527) em uma experiência estética. O objeto estético é ao mesmo tempo um objeto perceptual e também parte do campo fenomenalmente objetivo da experiência. Assim, a unidade da experiência estética não está somente na unidade do objeto percebido, ela também está na unidade da experiência de quem o percebe.
Uma das característica da experiência estética, segundo Beardsley, é que ela é uma experiência com alguma intensidade. Uma experiência estética é uma experiência dominada por sentimentos ou emoções, o que Beardsley (1958, p. 527) considera ser a intensidade da experiência ela mesma. Os objetos estéticos direcionam nossa concentração na experiência e nos afastam do que está ao nosso redor (Beardsley, 1958, p 527-528).
Duas características da experiência estética, que podem ser subsumidas sob a unidade, são a coerência e a completude. Uma experiência estética é coerente frequentemente em alto grau, mesmo quando ela é temporariamente interrompida (Beardsley, 1958, p. 528). Por exemplo, quando paramos uma leitura de um romance para jantar ou paramos de ouvir uma música por algum problema técnico, ao retomamos a leitura ou audição é quase como se não as tivéssemos interrompido. Uma experiência estética pode ser caracterizada como uma experiência que é completa em si mesma, ela se destaca, até mesmo se isola, da intrusão de elementos estranhos. Por causa da atenção altamente concentrada, ou localizada, característica da experiência estética, ela tende a “se destacar da corrente geral da experiência e permanece na memória como uma experiência única”, de acordo com Beardsley (1958, p. 528).
E, por fim, o outro elemento que caracteriza a experiência é a complexidade. Essa complexidade é devido aos objetos estéticos serem complexos, segundo Beardsley (1958, p. 529). Eles possuem o aspecto peculiar de não serem totalmente reais, há algo faltando neles para que atinjam o estatuto completo de cosias reais. Para Beardsley essa característica de “fazer-acreditar” ou “faz de conta” (make-believe) dos objetos estéticos suscita em nós um tipo de contemplação, sem fins práticos, característico da experiência estética.
Em síntese, as três características da experiência estética são: a unidade (que é coerente e completa), a intensidade e a complexidade. Beardsley propõe que o termo “magnitude” pode ser um termo geral para cobrir todas as três características. Ele defende, então, que é possível dizer que uma experiência estética tem uma magnitude maior que outra, de acordo com o grau de intensidade, complexidade e unidade da experiência estética.
2. As críticas de Dickie
George Dickie (1965) distingue dois modos de descrevermos a experiência estética, que não são mutualmente exclusivos. O primeiro, se atêm às noções de atitude e atenção. Nesses casos, a expressão “experiência estética” se refere ao modo como dirigimos a nossa atenção a certos objetos, ou seja, nossa atitude perante obras de arte. O segundo, usa a expressão “experiência estética” para se referir a um certo tipo de experiência que é produzida quando olhamos pinturas, ouvimos músicas, e assim por diante. Esse último modo de descrever a experiência estética é chamado por Dickie de “concepção causal da experiência estética”. Uma das variações da concepção causal, segundo Dickie, é a teoria estética de Beardsley. Dickie tenta mostrar que essa teoria é defeituosa, porque ela toma as experiências das propriedades estéticas do objeto como se fossem propriedades da experiência estética ela mesma.
Para Dickie, o principal problema da caracterização da experiência estética de Beardsley está na característica da unidade, assim como das características da coerência e completude, subsumidas nela. As características atribuídas, por exemplo, a uma pintura seriam equivocadamente transferidas para o espectador, quando Beardsley caracteriza a experiência estética como possuindo unidade, que é coerente e completa.
De acordo com Dickie (1965, p. 130), Beardsley concebe a experiência estética como um efeito do objeto estético. O objeto estético é concebido como algo que causa alguma coisa que é coerente e completa. Assim, existem duas coisas unificadas na proposta de Beardsley, segundo Dickie: (1) o objeto estético unificado, que podemos ver ou ouvir e (2) a experiência estética unificada, que é um efeito do que vemos ou ouvimos.
Quando Beardsley tenta explicar a coerência da experiência, de acordo com Dickie, ele se refere às características perceptuais do que ele chama de “apresentação fenomenalmente objetiva na experiência” e não a um efeito de características percebidas. Assim, Dickie conclui que Beardsley está fornecendo argumentos para a defesa de que objetos estéticos são coerentes e que ele não dá fundamentos para a defesa de que a experiência estética ela mesma é coerente.
Se a experiência do espectador é estável e equilibrada, então, talvez signifique que o espectador se sente estável e equilibrado como o resultado de olhar uma pintura estável e equilibrada. O problema, de acordo com Dickie, é que olhar uma pintura equilibrada e estável nem sempre nos faz sentirmos equilibrados e estáveis. Além disso, caso um impulso seja despertado por obras de arte, o que seria algo raro segundo Dickie, ele não seria contrabalançado por elementos da própria obra, mas sim pelo reconhecimento de que o espectador está em um ambiente de exposição ou apresentação da obra, como, por exemplo, um museu ou teatro.
Beardsley descreve a completude da experiência afirmando que ela é desinteressada ela mesma e isolada da intrusão de elementos estranhos. No entanto, segundo Dickie (1965, p. 133), é a experiência da completude da obra de arte que faz o espectador fixar a atenção com tanta firmeza a ponto de excluir os elementos estranhos, e não a completude da experiência ela mesma. Ele acha que Beardsley dá uma explicação evasiva para a defesa dos efeitos da experiência serem completos e coerentes e conclui que parece plausível dizer que é a obra de arte que é mais ou menos coerente e completa e não os seus efeitos (Dickie 1965, p. 133).
Dickie alega que a concepção causal da experiência estética é uma maneira indireta e enganosa de falar sobre algumas das características das obras de arte, por exemplo, sua coerência e completude, como se eles fossem efeitos de obras de arte. Ele acredita que alguma base para a avaliação crítica de obras de arte deve ser encontrada nas características das obras de arte elas mesmas, ao invés de nos efeitos que elas produzem em nós.
3. Algumas considerações
As críticas de Dickie levam Beardsley (1969, 1970, 1982) a reformular suas posições. Gary Iseminger (2003) considera que podemos classificar a posição inicial de Beardsley (1958) como uma concepção fenomenológica da experiência estética e a posterior como uma concepção epistêmica. De acordo com Iseminger (2003), esse debate é retomado nas elaborações de Malcolm Bud (1995), Jerrold Levinson (1996), Kendall Walton (1993) e Roger Scruton (1974), em uma discussão sobre se existe um estado da mente distintamente estético, caso a experiência estética envolva estados da mente. James Shelley (2022) analisa o debate Beardsley-Dickie em termos de teorias internalistas e externalistas da experiência estética, de acordo com como se caracteriza a experiência estética, se pelas características internas à experiência ou não. Isso nos mostra que o debate foi seminal para discussões mais recentes sobre a natureza da experiência estética e que pode ser retomado sob novas abordagens.
Referências
BEARDSLEY, Monroe. (1958). Aesthetics: Problems in the Philosophy of Criticism. 2. ed. Indianapolis: Hackett, 1981.
BEARDSLEY, Monroe. “Aesthetic Experience Regained”. Journal of Aesthetics and Art Criticism, n. 28, 1969, p. 3-11.
BEARDSLEY, Monroe. (1970). “The Aesthetic Point of View”. In: The Aesthetic Point of View. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1982, p. 15-34.
BEARDSLEY, Monroe. “Aesthetic Experience”. In: The Aesthetic point of view. Ithaca, New York: Cornell University Press, 1982, p. 285-297.
DICKIE, George. “Beardsley’s Phantom Aesthetic Experience”. The Journal of Philosophy, v. 62, n. 5, mar. 1965, p. 129-136.
ISEMINGER, Gary. “Aesthetic Experience”. In. J. Levinson, ed., The oxford Handbook of Aesthetics. United Kingdom and other countries: Oxford University Press, 2003, p. 99-116.
SHELLEY, James. “The Concept of the Aesthetic”. The Stanford Encyclopedia of Philosophy, Edward N. Zalta (ed.), 2022. <https://plato.stanford.edu/archives/spr2022/entries/aesthetic-concept/>.