A rapidez com que avanços tecnológicos hoje provocam nos usuários expectativas cada vez mais instantâneas quase sempre provoca uma contrapartida desconfiada naqueles que costumam ser resistentes a mudanças. Ocorre que essa postura envelhecida parece trazer alguma razão na denúncia que faz contra o anseio desesperado por novidades. Sobretudo em função da utilização constante das redes sociais, os usuários percebem-se cada vez mais ansiosos e desatentos. O acúmulo de informação embota o processamento das ideias, o que tende a causar perda de concentração para atividades mentais mais exigentes e frustrações sucessivas ao lidarem com as relações sociais na vida real. Todas essas constatações decorrem inegavelmente da convivência que temos com as novas dinâmicas da comunicação virtual. Isso porque toda tecnologia exige adaptação, certa afinidade com a lógica de interação com os produtos oferecidos por essa técnica, o que, no caso do mundo dos algoritmos, significa reduzir a complexidade do pensamento humano ao binarismo simples e programático da lógica das máquinas.
Tais implicações vêm sendo estudadas pela filosofia da tecnologia, pela psicologia cognitiva e por outras ramificações do conhecimento preocupadas com o tipo de reflexo que será produzido sobre as relações humanas a longo prazo. Certo é que o impacto é inevitável, e já está em curso. O mesmo foi possível perceber com o advento da tecnologia da escrita. A literatura, compreendida como resultado satisfatório e elaborado da tecnologia da escrita, era vista com desconfiança em seus desenvolvimentos iniciais. Como atestam os primeiros esboços de uma crítica contundente à escrita por parte da filosofia, sua utilidade técnica, concentrada no registro com a finalidade de preservar informações, escondia o reverso da moeda na sucessiva precarização da memória humana, então peça-chave na engrenagem de uma cultura oral. Uma tal crítica, oriunda de um exímio escritor como foi Platão (427-347 a.C.), deve nos precaver de levá-la tão a sério. A filosofia encontra, em Platão, sua primeira expressão literária mais duradoura, e o registro das conversações socráticas tornou possível que gerações pudessem, como fazemos ainda hoje, participar, pouco que seja, do fenômeno originário da filosofia em Sócrates, durante as décadas finais do século V ateniense.
Na passagem da escrita para a literatura, é preciso levar em conta, portanto, a qualidade da técnica. Platão construiu não um estático monumento à filosofia de Sócrates, não apenas isso – porque a literatura, aperfeiçoamento artístico da escrita, permite sobretudo uma recriação de realidade, de experiência simbólica e emotiva, elementos sem os quais não nos tornamos participantes daquilo que é descrito. Os diálogos de Platão, sendo literatura, são o acontecimento que funda, a cada nova leitura, a experiência filosófica originária. Nesse sentido, reduzir o literário ao meramente instrumental, ao grosseiro registro daquilo que tem sua realidade fora e para além das palavras é, no mínimo, fazer mau uso da técnica – mas, sobretudo, é cair no escopo da crítica platônica que, em Fedro, parece ser dirigida aos maus escritores, como o logógrafo que dá nome ao diálogo, mas na verdade se dirige aos maus leitores.
Para saber ler é que a filosofia convida a participar da literatura. Como criadora de mundo, a literatura abre as possibilidades do discurso ao sempre novo de uma dinâmica que torna o humano menos obtuso e mais transparente, ainda que o faça sob o influxo da complexidade que o constitui. O discurso, por isso, sempre apareceu como objeto privilegiado da reflexão filosófica, porque é no discurso que se presentifica o saber e a verdade. Isso não quer dizer que verdade e saber estejam no discurso, mas na vivência que o discurso simboliza com uma intensidade outra, distinta da experiência originária que ele encarna nas palavras, mas que não lhe é estranha e sim bem nossa – é como que a maneira particularmente humana de se experimentar a si mesmo.
O traço coletivo e social do ser humano acabou por esbarrar na finalidade inescapável da linguagem e da literatura: a de comunicar vivências. A literatura, sendo arte, não apenas comunica, mas convida à participação. É fundamental que na técnica da escrita esteja implicada essa técnica complementar, a da leitura – sem a qual a escrita se perde no mero registro sem sentido. O convite à participação na vivência comunicada é, me parece, a melhor forma de compreendermos a literatura, naquilo que ela sustenta como arte e como técnica. Com essa caracterização, ingressamos numa interação entre literatura e filosofia pautada não mais em se servir da arte como exemplo de ideias, mas em vivenciar, na arte, experiências e reflexões que nos põem bem ao centro da dinâmica filosófica, aquela que pretende pôr a exame as experiências a partir das reflexões que elas, supostamente, sustentariam.
Construímos, no decurso do tempo, um legado importante e imprescindível para a cultura humana em geral, e para a constituição das relações sociais em particular. Nosso atual apreço pelas leis deriva do apreço que desenvolvemos pela escrita, enquanto ao mesmo tempo matriz de valores e condição da imparcialidade intersubjetiva que permite a convivência. O sujeito transcendental do filósofo alemão Immanuel Kant (1724-1804) só é possível pela escrita e leitura como condição de possibilidade de constituição da subjetividade. A mesma subjetividade que, posta em questão desde Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Sigmund Freud (1856-1939) até Michel Foucault (1926-1984) e Giles Deleuze (1925-1995), vê-se decomposta nos discursos que pretendem lhe constituir as dinâmicas tanto externas, de interação coletiva em suas relações de poder, quanto internas, de apropriação do saber enviesado pela autoridade e pela resistência ao outro.
Só entendemos essa subjetividade se a compreendemos pela dialética entre narrativa e racionalização, entre mýthos e lógos, que o filósofo Paul Ricoeur (1913-2005) situa como expressividade de nossa concepção espacializada do tempo, quer dizer, como uma articulação sequencial dos fenômenos. A marca do discurso textual está na disposição das palavras, especificamente articuladas em sequências que seriam posteriormente definidas pela gramática como essenciais ao funcionamento da língua. Está aqui, me parece, a principal distinção ocorrida entre a tecnologia da escrita e a da virtualidade algorítmica. Ainda que percebamos a presença do ritmo sequencial em certos usos que fazemos das redes sociais, como há, por certo, elementos da oralidade no desenvolvimento da escrita, não se pode deixar de notar que a virtualidade procura lidar com uma expressividade subjetiva que prima pela simultaneidade, pelo afluxo instantâneo de informações audiovisuais, capaz de não raro subverter a atenção da consciência e da racionalização sequencial para atingir nossa imaginação emocional, o que temos de mais simultâneo em termos de vivência mental.
Nesse sentido, a própria caracterização do acontecimento discursivo passa a sofrer influência da alteração pela simultaneidade virtual. Se no caso do discurso sequencial, seu evento de comunicação permitia circunscrever, separadamente, eixos de elucidação como os de autoria, contexto de fala e recepção, considerando ainda a ação de transmitir a fala por meios de comunicação como os da escrita ou da testemunha oral, no mundo virtual a recepção é instantânea ao contexto de transmissão do evento de fala, de modo que a autoria, não raro, sofre com uma relativização transmissiva que tem sido peça-chave para a produção das chamadas Fake News, que nada mais são do que um tipo de acontecimento discursivo retirado de sua lógica sequencial originária e recriado sob a lógica da simultaneidade, em seu apelo emocional. Veja, por exemplo, o caso dos memes: quase sempre compostos por uma imagem que apela a reações espontâneas (raiva, alegria, nojo, no âmbito daquelas seis emoções básicas já diagnosticadas por pensadores como Gilbert Ryle) e poucas palavras que potencializam o efeito emocional, eles são consumidos pela audiência com a rapidez de um clique – e a rapidez digital, atributo da lógica simultânea das informações, não necessariamente impede a reflexão (por se dirigir à reação emotiva), mas a torna inoportuna. Este era o mecanismo que Freud já havia indicado na conformação das massas humanas. Mecanicamente, a audiência digital assume a postura da emoção cada vez que se deixa conduzir pelo que seria mero entretenimento, assumindo com isso pressupostos e preconceitos que tendem a se manifestar depois na vida cotidiana não só particular, mas cultural e política.
Por ser fenômeno recente, os estudos sobre o universo virtual e a simultaneidade digital ainda tateiam quanto aos diagnósticos e às possíveis terapêuticas capazes de nos precaver das deficiências que qualquer nova tecnologia acaba produzindo. Quando a crítica de Platão apelava para que a filosofia fosse verdadeiramente realizada na oralidade, ele estava oferecendo algo similar para os que quisessem continuar o legado de Sócrates. Se esta sua terapêutica, no entanto, não o impediu de utilizar da escrita de modo a tornar ainda mais potente o acontecimento originário da filosofia, talvez tenhamos que aprender com Platão a melhor maneira de utilizarmos o mundo virtual, neutralizando as deficiências que ele inevitavelmente acaba por trazer.